sexta-feira, 7 de setembro de 2018


A TRAVESSIA DOS "OBJETOS INANIMADOS" PARA A ANIMAÇÃO DA VIDA: MEMÓRIA AFETIVA.

Hiran Pinel, autor.

Vou descrever aqui-agora, de modo (quase kkk) fenomenológico, um tema que me é caro: o objeto ou "coisa" é descrito inanimada, mas na sua presença com os humanos que os manipula, pode ganhar outros sentidos, significados sentidos.

Recorro ao sentido de "memória do vivido" com uma coisa ou objeto. Nossa vivência com aquele determinado objeto,  aqui-agora preso à nossa memória, vem à lume, ganha potência e força. Sai com força, sem pedir licença ao sujeito da lembrança. Tudo vem no sentido de transformar aquele objeto aparentemente frio, coisificado, em algo cheio de afeto, amor, reconhecimento, identidade, raciocínio, desejo, sentimentos, emoções. ódio, rancor, pensamentos, ações corporais frente a ele e ou à sua simples lembrança.

Assim, muitas vezes um objeto, por sua simples presença, provoca o sujeito individual desvelando o coletivo nele, pois um único objeto pode despertar multidões.

Dando um exemplo: a memória que temos da nossa antiga "escola primária", por exemplo, e nós já maduros e ou idosos, justo essa memória produz identidade, ligação com o outro, e nos diz muito acerca dos nossos modos de ser (sendo) estudante, aluno etc. Falamos do presente, pois o passado vem com força no presente e o reinterpretamos não necessariamente como foi, mas como aqui-agora imaginamos como foi e como será (futuro). Então, tudo é aqui-agora. Aqui é o lugar, agora é o tempo.

Um objeto como "as paredes mal pintadas e descascadas" e "ursinhos de pelúcias coloridos", por ex, são objetos inanimados. O ursinho pode até nos recordar o animal vivo, mas o de pelúcia é um objeto. A parede é algo dura e inerte, mas passa a ser mover de acordo com nossas memórias acerca dela - por ex: beijamos alguém recostados naquela parede ou vemos e tocamos e sentimos uma outra parede, e lembramos daquela original, a primeira. Um retrato é apenas um objeto, mas se é a imagem de nosso amigo ou amante, ganha sentido de humanidade, corpo vivo. Isso vale também para os cheiros, os gostos, os sentidos todos...

Mas aqui-agora focaremos as coisas e os objetos, com os cheiros, inclusive e suas espessuras, suas texturas ao toque. Focaremos nos dispositivos, nas ferramentas - coisas, objetos. É o passado e o futuro, mas sempre no aqui-agora, no presente, revisto e descrito nesse espaço (aqui), nesse tempo (agora).


Qual a percepção fenomenológica existencial de um ex-paciente-aluno hospitalar acerca de alguns objetos com os quais conviveu na clínica? Essa pode ser uma questão para quem estuda, como nós, a Educação Especial Hospitalar Escolar e Não Escolar. Mas nosso objetivo com esse ensaio é outro.

Esse pequeno ensaio científico, totalmente experimental, formando um "paper" (rascunho), objetiva estudar dois filmes, procurando compreender a importância dos objetos nas narrativas e de como "coisas" ficam impregnadas de afeto e de conhecimento, tudo isso na nossa percepção fenomenológica quando aqui-agora nos recordamos deles, quando o vemos, sentimos, tocamos, cheiramos etc.


O que é e como é um "objeto ou coisa" que marca nosso mais profundo ser sendo junto/ com o outro no mundo, e que quando vem à memória (à tona), percebemos fenomenologicamente que fez uma simbólica travessia de "coisa" para ser (que nomeamos), e então o desvelamos pelas nossas emoções, desejos, sentimentos, raciocínios, expressões corporais?

* * *

Um objeto ganha vida, respiração, apresenta sentimentos, desejos, emoções, raciocínios, pensamentos, ações corporais etc. Um objeto pode ficar na memória humana, e quando visto ou lembrado é sentido, chorado, alegrado, emocionado, refletido. A memória de um objeto pode provocar nossos movimentos, nossos modos de solucionar um problema etc. Um objeto (ou coisa, ferramenta, dispositivo etc.) pode fazer uma travessia do inanimado para o animado, do neutro para o amor e o ódio, para a alienação ou libertação.

Pessoas comuns relatam memórias afetivas e desejantes de "prédios escolares", por exemplo. Você pode visitar sua escola, e as paredes te recordar momentos que teve de amor com a garota, um amigo ciumento que te desejava sexualmente, mas que você regulava o amor, por impedimentos psicossociais ou mesmo porque você não acompanhava o desejo do outro. Você pode sorrir ou chorar visitando o internato em que estudou, relembrar as repressões sofridas, a arrogância dos professores - trazer para o presente, para o aqui-agora, o passado, e o que o futuro significa. Uma pintura do internato que ainda permanece a mesma cor, o modo como se arquitetavam no espaço as camas... A arquitetura escolar facilitou sua aprendizagem? Há relação arquitetura e o aprender com sucesso acadêmico? A arquitetura ajudou a produção dos desejo sexuais de quem ali dormia?

No cinema é possível ver cenas donde o personagem "olha" para uma arquitetura, sente-a, remexe dentro de si devido ao sentido subjetivamente, e assim você pode encontrar satisfação ou insatisfação, alegria, tristeza, melancolia, comédia de erros do viver etc. Mas é como se a "coisa" não fosse neutra, pois lhe é fornecida identidade, humanidade - a presença do homem naquela arquitetura fornece-lhe muitos significados, sentidos.

O objeto ou coisa material é aquela ferramenta ou dispositivo que pode ser portadora de mensagens de amor ingênuo e sexo, por exemplo - e de quaisquer outras mensagens. No filme "Water Boyy, The Movie" (Tailândia, 2015, de Rachi Kusonkusiri), o roteirista e diretor escolhe (intencionalmente) um objeto cuja representação pode nos trazer o sentido de pureza e infantilidade, no caso, um urso Panda de pelúcia, o fofinho, a coisa mais lindinha, uma cópia dos ursinhos pandas naturais da China. É comum então que os objetos em um filme "dizerem" muito dos personagens, e os espectadores se comovem, pois é algo comum no existir cotidiano banal, o nosso dia a dia real... Também somos impregnados pelos diversos sentidos de um objeto. A simples presença da "coisa mesma objetal", seu mostramento, quase que sagrado, na cena, pode evitar diálogos e conversas dos personagens, pois podemos, nós mesmos, dialogarmos com a cena - dar nossa impressão e com isso o diretor consegue maior envolvimento com a plateia, e é óbvio maior sucesso popular, imagino aqui. Em "Water Boyy", na cena final, os dois jovens tocam o ursinho, objeto de amor, do significado desse (amor), o companheirismo que agora se instaura, indicando que morarão juntos em um prédio de apartamento próximo à universidade - algo bem repetido em filmes e séries tailandeses. O urso aparece como promessa de amor, acerto de contas, reinício de uma longa história, mantém nossa fantasia de amor eterno... Descrevo o começo de tudo, da própria vida, vida esta motiva pelo amor, por sua ideologia.

Em outro filme, vemos um "palhacinho de madeira", desmontável como um quebra-cabeça. Nesse filme, esse objeto é vital ao enredo, ele quase que move o filme todo. Estou falando de "Love Of Siam" (Tailândia, 2007, de Chookiat Sakveerakul).

Vemos então a famosa "cena do presente que um amigo dá ao outro" - um palhaço de madeira. O objeto é que move a emoção de todo o filme "Love Of Siam". Repetimos que falamos de um "palhaço de madeira" que pode ser desmontado, parte por parte, que se compra separadamente, algo como uma peça de quebra-cabeças, repetimos. Ou seja, o palhacinho não é apenas um brinquedo, ele começa exigindo que o monte/ componha, é preciso, pois, envolvimento para vê-lo completo. No palhacinho sempre falta, falta-lhe uma parte - de fato, falta-lhe um nariz vermelho, que o amigo não conseguiu encontrar ou se perdeu.

Podemos falar de um tipo simbólico de "falta": "falta um amor que falha", um amor sempre a se completar e que nunca consegue, um amor impedido. Se apercebermos bem, o final da película é compatível com a "coisa mesma objetal" em falta, em falha. Uma coisa que ao completar, depois de muita luta e negociação da "namorada do outro que ama o outro", termina concretamente o amor/ namoro, rompe o amor, diz adeus - e os dois aceitarão algo como destino, que os une pela memória da "coisa mesma". Formou-se um vínculo e depois o rompe, mas o objeto pode nos indicar que esse amor nunca acabará, pois é um existente na memória eterna - um nariz foi comprado na loja. Diga-se de passagem, um amor eterno enquanto Alzheimer não chega... (kkk)

O objeto na memória se trata do inesquecível "amor", um amor que o objeto, que visto e sentido, trará no presente o passado supostamente feliz e melancólico ao mesmo tempo.

Em "Love Of Siam" se trata do amor como sofrimento, dor da paixão, a melancolia instalada quando a alegria poderia sobreviver. O palhacinho pode indicar o quanto nutrimos o amor da perdição, amor do sofrimento. O amor inventado como melodrama é sustentado e mantido por nós. Uma ideologia dominante que recusamos desmascarar. Em "Water Boyy" se trata do começo do amor, do futuro do amor, das promessas de alegria e de prazer de amar. Em "Love Of Siam" se trata do amor dolorido, do drama e do melodrama, do acreditar que o amor é sangue e lágrimas, o quão belo é sofrer por amor.

Os objetos inanimados se transformam em vida na nossa percepção, nossa vivência e ou experiência que tivemos/ temos com eles... Mente, corpo e alma mexem-se todos, se misturam e "hibridizam", tudo isso dentro de nós como "ser no mundo" que somos, em um mundo objetivo, concreto.

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Hiran Pinel, autor.
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