No filme "Rosa Púrpura do Cairo" (de Woody Allen) há uma garçonete
chamada Cecília, casada com um cara que a agride, vive uma vida de merda
- durante tempos sombrios dos Estados Unidos (Grande Depressão, de
1929), uma crise que atacou o mundo. Ela esquece essa e outras vivência
dolorosas, inserindo-se em outra (vivência) - a de ir ao cinema. Nesse
cinema ela tem uma predileção por um filme que ela assiste dezenas de
vezes, até que um dia, estando re-assistindo o mesmo filme que
se chama "Rosa Púrpura do Cairo", constata que o galã da referida obra
de arte, sai da tela e se transforma em humano desajeitado, pois homem
da ficção é diferente do real. Esse ser imaginado saí do telão e vem
conversar com ela no real e saem por aí, e há um momento em que ele a
leva para dentro do filme, da ficção... Arte/ficção e realidade se
retroalimentam... É no cinema que a pobre garçonete irá ver e sonhar
com homem lindo, educado, elegante, corajosos, que defende as mulheres,
macho perfeito, que só tem cheiro bom (e não catinga) etc. Ela sonha com
o homem idealizado, romantizado. O interessante é que o seu final é
sempre ilusório: ela entra no cinema e sorri um riso puro e ingênuo tipo
Cabíria de Fellini. Ela acredita que se a sua vida real é uma bosta (e
é), mas essa mesma vida inventou/ criou a arte, a literatura, a poesia,
os esportes, a pintura - a ilusão, o sonho como modos de sobreviver a
todo esse mau cheiro. É certo que ela poderia sonhar vendo um filme, e
ao mesmo tempo aprender a discernir fantasia da realidade - claro!
Entretanto, no caos dessa crise nacional e internacional, não é bom para
seu país detectar o quanto a sua nação é maléfica e produtora de tanta
angústia. Ter uma cidadã chamada Cecília consciente crítica, é ter mais
uma a perturbar a ideologia dominante... Ela seria uma ameaça ao Estado
voraz, consumidor destrambelhado, competidor desenfreado. Mas não é
apenas os Estados Unidos, é o Brasil também, e o mundo... Por isso Cecília tem como
opção apenas sentir-se alienada - nem ao marido enfrenta, um troglodita
como muitos maridos ainda. Ela sorri no cinema, diante de um novo filme
que projeta na tela e já podemos imaginar que daqui uns tempos (naquele
espaço), outro galã sairá das telas, desajeitado e incompetente a lidar
com o real, mas acima de tudo ele será a comprovação de que sem ele
(essa fantasia) a realidade não teria significado vivido, e sem a
realidade ele (a fantasia) não se comporia, não se instauraria. Por isso
eu acho, ACHO, que quanto mais existe os tempos sombrios, mais a arte e
a literatura, as mais fantasiosas possíveis, se proliferam havendo
assim uma demanda de consumo. Falo de tempos sombrios sejam eles
pessoais/ íntimos, mas também, e principalmente os sociais. No Brasil se
vai ainda muito pouco ao cinema (mesmo sendo um mercado promissor), bem
como pouco se lê literatura/ poesia, mas temos as telenovelas, as
séries de TV e internet, músicas populares (maior e mais imediato
consumo), o futebol (que também é arte) etc.
