domingo, 17 de abril de 2022

 

O PROCESSO VIVENCIAL DE SER ESTUDANTE CEGO NA SINDEMIA DA COVID-19

Hiran Pinel, autor

12 de abril de 2022

Vitória, ES.

EM CITANDO: Favor referendar. Não cometa crime  de plágio, de qualquer jeito sempre devemos a alguém antes de nós, que pensou-sentiu-agiu, MAS cite. É fácil citar


O surto, a epidemia, a endemia, a pandemia etc., desvela, ao contrário do que se pensa, de que há mais variáveis, e não apenas uma, nas questões de saúde como na atual Covid-19, DST-HIV-Aids, influenza, hanseníase, febre amarela etc. Podemos acrescentar aqui-agora o termo "sindemia", considerado um termo mais correto em lugar do de pandemia. Mas, qual a origem do termo "sindemia"?

A palavra "sindemia" traz ao seu corpo etimológico dois vocábulos aparentemente diferenciados, mas que se completos: "sinergia" e "epidemia". Fue Émile Littré, século XIX, que intrduziu em seu "Dictionnaire de la langue française" (1872-1877) a palavra "synergie" como própria da Fisiologia: é a confluência e  competição "de ação, de esforço, entre vários órgãos (humanos), vários músculos; associação de vários órgãos para o desempenho de uma função”. Trata-se de sintetizar o que se conhece por "epidemias sinérgicas". De origem grega, "syn" =“trabalhar juntos” ou “atuar, agir com”, enquanto "demos" = população, que é usado ao modo semelhante aos termos epidemia e endemia.

Na sindemia ocorre diversas doenças, em seus múltiplos estágios, interagindo de forma e modos interdinâmicas e diferenciados, produzindo danos uns aos outros, aumentando negativamente seus efeitos sobre o organismo humano coletivo e individual destacando e desvelando direta e visivelmente seus impactos numa dimensão social, ambiental, biológico e psicológio-existencial.

Podemos falar em uma "sindemia da emergência", ela que carece de uma visão ampliada (ou holístico-existencial) quanto ao papel da Saúde Pública. Para um serviço de assistência adequada e de qualidade ao povo, onde o próprio Estado resista desbragadamente contra sua necropolítica - e isso é (im)possível, pode ser uma exigência criar e fazer uma metafórica travessia da abordagem clássica epidêmica quanto ao risco de transmissão, chegando ao uma percepção do fenômeno existencial (humano, mundo, problema, intervenção) inserindo os modos de ser do ser no mundo sindêmico, potencializando os aspectos sociais, biológicos/ orgânicos, psicológicos e até existenciais.  

Na perspectiva, aqui-agora descrita, a sindemia é um termo que indica a responsabilidade que temos em descrever compreensivamente o conjunto de problemas de saúde, que são de fato interligados, e de modo complexo, mas de uma aproximação muito íntimas e ao mesmo tempo indissociáveis. Essa associação de doenças, quanto mais se interligam, mais elas vão se ampliando na contaminação uma das outras, prejudicando, mais e mais, a saúde do ser humano. O prejuízo pode ocorrer numa dimensão individual, mas, principalmente na coletiva, revelando de modo mais evidenciado as condições pelas quais tais pessoas estão inseridas, sendo elas oprimidas, marginalizadas, famintas, obesas, diabéticas, com sérios problemas cardiológicos, uso de drogas etc., pontuando o estado psicológico existencial em sentir-pensar-agir experiências negativas, pois injustas, como a  pobreza, a estigmatização, o distresse, a violência etc., que tem persistido na estrutura de uma sociedade de classe, estruturada por um capitalismo selvagem.

Assim sendo, a sindemia envolve grupamentos de duas ou mais doenças entre o coletivo populacional, bem como o mostrar da indissociação de fatores psicológicos (problemas emocionais; problemas na aprendizagem devido à tensão gerada, por exemplo), sociais (e culturais), e de chofre, o biológico ou orgânico-corporal (doenças infecciosas e parasitárias, doenças crônicas não transmissíveis, desnutrição etc.).

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Temos estudado o/a aluno/a cego/a no processo "pendêmico" da Covid-19  associado com outras doenças (psicológicas, biológicas, sociais) em contextos sociais diferenciados, que o são, de modo radical, pela classe social, configurando, então, o que se denomina de sindemia. Temos focado uma Educação Especial dentro e fora da classe hospitalar, observando o sujeito propriamente dito com suas singularidades, assim como sua família e ao entorno, fazendo parcerias com os serviços públicos de saúde e de educação fora do hospital (classe hospitalar).

Compreendemos o aluno cego empobrecido pelo sistema capitalista selvagem. Seu nome pode ser Kongpob, e ele pode ser compreendido como aquela pessoa com uma vivência distressante que a sindemia acarretou, inclusive, dificuldades emocionais e "tensionais" (corporais) que o perturbava no seu desempenho acadêmico em "estudos online" no seu domicílio, ou estando ele numa "sala de aula inclusiva" ou numa "classe hospitalar", lugares de sentido em que vinha obtendo bons rendimentos, só que antes do fenômeno sindêmico. O reflexo existencial de uma Covid-19 na pessoa cega, no seu caso, produziu impacto nos "modos (dele) de ser" cego no seu "ser no mundo" complexo, injusto e perverso, apesar de algumas subjetividades e objetividades positivas. Tanta psicopatia advinda das pessoas e da necropolítica (Estado) foi desvelada frente às situações caóticas da saúde pública brasileira, devido mesmo a uma péssima gestão dos serviços (de saúde) oferecidos pelo país ao cidadão empobrecido e oprimido.

O atendimento oferecido não foi da altura de uma pessoa cega e rica, ele mesmo percebeu isso, um médico chegou a expressar isso conosco - com o Grufei, a diferença de tratamento na saúde pública comparado com o de pacientes conveniados com sistema privados de saúde, ainda que no caso da Covid os recursos cientificamente disponíveis serem bem escasso.

A professora de Educação Especial no seu cotidiano, poderá desaperceber um cotidiano de ser cego, que nas condições de prevenção contra a Covid, seu aluno tenderá a sair prejudicado, pois, não enxergando, tudo fica difícil a ele nesse contexto sindêmico, por ex. Fica muito difícil ao aluno cego fiscalizar o uso, no outro, da máscara, do álcool gel, assim como o distanciamento, e o não passar as mãos em objetos que podem estar contaminados etc.

As mãos, não só elas, mas principalmente elas, são uma das possibilidades (ricas, até) do cego lidar com as coisas dos mundos, o outro e os outros - tocar, o autorizar-se tocar-se e permitir que o outro o toque. E em ambiente inóspitos, adversos/ agressivos/ perversos/ preconceituosos/ estigmatizadores/ discriminadores etc., o "passar as mãos" torna-se assim mais um risco para expressar seus "modos de ser" frente à sindemia da Covid. Mas, esse "ser no mundo" vive em um mundo desigual, principalmente marcado pelas classes sociais.

Assim, por ex., um cego com Covid fazendo prevenção contra, sendo este pobre, com cânce e ou outro, sendo aquele rico e com câncer, (eles) vivenciarão possibilidades diferenciadas de acordo com a classe de onde eles estão instalados pela produção capitalista selvagem, podendo ter semelhanças e diferenças, tanto positivas e ou negativas pra ambos os lados, mas, sem dúvida, o indivíduo cego rico poderá ampliar mais suas redes de cuidados concretos.

Imaginemos cegos dois diabéticos obesos, tipo 2, com a mesma idade cronológica, mesmo peso. Um é rico e tem acesso a remédios caros e de bons resultados clínicos, como Saxenda, que custa cerca de 800 reais a caixa, com três canetas, se se ele aplica 3ml ao dia, o remédio não durará nem um mês. Ele poderá tomar Trulicyt que custa cerca de 300 reais, com duas canetas, que duram duas semanas apenas, além dos outros remédios que se consegue, apenas com uma receita médica, via serviço público de saúde como Glifage e outros, mas não pode recorrer à Saxenda e Trulicyt no público, pelo menos, por ora. O diabético empobrecido só tomaria Glifage e outros. Isso sem considerar as dificuldades de acesso ao serviço público de saúde, devido até mesmo, à desinformação ou desesperança. Ambos têm que fazer regimes alimentares - com e sem nutricionistas; exercícios físicos - com ou sem academia, e ou professor particular de treinamento físico; e os referidos remédios, e isto implica em gastos econômico, conhecimento, capacidade a produzir resistências e reivindicação etc. Pela probabilidade, o diabético rico, que tem acesso aos mais diversos e atualizados remédios na esfera de sua doença, academias, nutrólogos (médicos) e nutricionistas, psicólogos clínicos, psiquiatras etc., provavelmente sairá melhor do quadro, isso sem contar com atendimentos médicos por planos privados de saúde ou atendimentos privados mesmos - ainda que possa haver diferenças, exceções. Isso começa a pontuar o sentido de ser cego empobrecido e ou rico, vivenciando um processo de sindemia.

Por isso, é preciso estancar imediatamente as ações necropolíticas e partir para uma reformulação ágil dos sistemas públicos de saúde, retomando valores humanos dentro de uma humanidade ético-estética -  o "quão belo" (estética) é cuidar (ética), por sinal, investimentos "esquecidos" até intencionalmente pelo Estado necropolítico. E a saúde pública é bem mais do que oferecer vacinas, algo indispensável e vital, potente, mas cuidar de outros aspectos relacionados à saúde em geral: toda saúde e sua relação com a educação (pública), justiça, segurança etc.

Já os serviços de saúde e educação, nestes tempos-espaços, poderia focar na formação de sujeitos mais reivindicativos, resistentes, opositores à corrupção do Estado necrófílo, onde as relações interpessoais sejam suficientemente positivas, para recordar ao aluno cidadão: a) que as relações interpessoais positivas ajudam na produção da boa saúde mental; b) de que elas, as relações amorosas professor-aluno, possam (co)mover o processo ensino-aprendizagem de aluno especiais ou não, nos conteúdos educacionais e escolares, sejam os planejados, sejam os politizados; c) produzir a conscientização crítica (Paulo Freire), bem como modos de ser na invenção da resistência e desobediência civil contra as necropolíticas na saúde e fora dela; valorizar a ciência, mas sem endeusá-la alienadamente, reconhecendo seu papel e força frente a uma pandemia, que de fato acaba configurando uma sindemia - etc.