quarta-feira, 12 de junho de 2019

Minha casa em Lajinha, MG., vivia cheia de livros, e não sei até hoje o motivo disso, o dos meus pais amarem livros. Um dia, mexendo neles, encontrei um desses muitos livros, intitulado "Meninos Sem Lar" (1944) de Anna Freud e Dorothy Burlingham, da editora Agir, edição capa dura. Eu nem sabia quem era cada uma das escritoras, mas conhecia de nome (e o respeitava) Sigmund Freud, pai de Anna, assim como também não conhecia amor que (co)movia as duas autoras - só vim saber, e bem depois, graças do dicionário de Roudinesco e Plon, que por sua vez, levou-me a mais livros, e que eu as biografei em um livro meu, já publicado. Fiquei impressionado com o título da obra, só o título. Como eu era bem jovem, fiquei imaginando, que o título era uma 'mensagem' (risos) da minha família pra mim - algo subliminar, algo persecutório, algo que eu inventava como 'ser no mundo', minha narrativa melodramática, a mesma que me levou aos filmes, às séries de TV, à ficção literária e poética, à música, à dança, pintura, desenho, vídeos, histórias em quadrinhos, fotografias etc. Sempre fui um homem sem lar, por isso sempre fui um conquistador do outro. Eu amava o outro e seu lar ou que tivesse um lar, mesmo sendo ele (o lar) conflituoso, no peito desse outro, por isso, esses outros sempre me sustentava, eu me acoplava a eles - me colava com aquelas colas baratas chamadas grude, que se produzia no fogão, algo da dimensão do possível "descalque", caso não desse certo. Eu sentia que era um jovem sem lar, mas me acostumei com o lar dos outros, daqueles que eu amava e me amavam - eles eram meu lar, eles me tatuavam a pele, morada do meu ser sendo com o outro, no mundo - uma casa que fazia uma travessia para um lar, o amor, a felicidade e a memória. Isso é uma experiência altamente positiva, nunca deixei de amar: amar e ser amado pelo lar presente no peito (e pernas) dos outros. Sou capaz de fazer uma pequenina, mas significativa lista, com os nomes de cada uma, e até de cada um (risos suaves), e até o grau do envolvimento dentro de cada lar, pois, afinal, contemporaneamente, sempre fica alguém lá no alto estrelar, o meu rei e ou rainha Sorge. Eu só não faço tal lista, por guardar cada nome, que lhe é próprio, em meu peito tatuado. Tudo isso é experienciado nas minhas pernas, minhas entranhas, meu corpo total - organismo, afeto, cognição, a sociedade, cultura e história mediados dentro de mim, numa melodia onde tudo é fincado, entranhado, 'hibridizado'. Tem coisa na nossa vida que pode ser um segredo não revelável, pois o melhor do nosso existir é a lição que podemos extrair, de modo cuidadoso, do nosso vivido. 

Hiran Pinel...