crítica: esboçando uma.
ONDE ESTÁ A
OUTRA METADE DE MIM?
Hiran Pinel
"HOJE EU QUERO VOLTAR
SOZINHO" (BRASIL; 2014; um filme longa metragem de David Ribeiro). Um
jovem cego - Leonardo - sofre algum bullyng na escola, por um ou dois videntes
- arrogantes e prepotentes. Leo tem a seu favor uma amiga inseperável -
Giovana. A família dele superprotege-o - os pais Carlos e Karina. Ele procura
se rebelar, e a avó Maria aparece para fazer um suave contraponto com sua
curiosidade em sentir o amor, algo que substituirá (por ora) sua vontade de
fazer intercâmbio no exterior. Num dia, aparece em sua sala de aula, um jovem que se
anunciará: "Gabriel", como na metáfora do anjo provoca(dor), parecendo levemente com
"Teorema" (ITÁLIA; 1968; direção de Pier Paolo Pasolini). A partir
daí, as experiências de ser cego (e humano) ganharão novos sentidos, conversas
e amores - paixão. Os diálogos entre os dois, as trocas de conhecimentos, altas
horas da madrugada trocando ideias e a inicial amizade os comovendo, algo do interior (de uma cidadezinha, e da subjetivação), de um momento impagável, uma dívida que se cria: o que não se nomina, mas se tenta fazê-lo.
O outro marcará seu "desenvolvimento-aprendizagem", isso fica evidente: a
alteridade na sua mais significativa produção de sentidos de vida: A vida tem sentido a partir desses encontros, bons encontros! Tudo muito
gradual e bem minimalista, nesse filme que já é Cult, tal qual "Beautiful
Thing" (INGLATERRA; Delicada Atração; 1996; de Hettie MacDonald) que me parece suave e levemente chegado artísticamente. O filme
ganhou muitos prêmios, muitos deles, como em Berlim e outros festivais do
mundo. Há seis cenas muito bacanas - dentre outras, é claro: 1) a entrada de
Gabriel; 2) o beijo na porta da casa, donde Gabriel está sendo o DJ; 3) o
cheiro do moleton (a melhor de todas; o objeto como memória do amor e do sexo);
4) a entrada da música de Belle & Sebastian, "There's Too Much
Love"; 5) Gabriel no banho (no chuveiro coletivo do acampamento), olhando com desejo (outra cena inesquecível - muitos a julgam melhor que o cheiro do moletom por Leonardo); 6) Leonardo
sonhando-delirando em preto e branco, o abandono e o apego. Belíssimo filme,
raro no seu tema, delicado como poucos. Adequado a ser usado em sala de aula
junto a jovens estudantes, evidentemente conseguindo apoio da instituição
escolar e do(a)s estudantes, e quem sabe, dos pais kkk. A escola, em Educação
Sexual, vive amarrada kkk. O filme é uma experiência no sentido como em Larrosa
Bondía (2002) - o filme mesmo é algo que toca o todo do espectador, e que deixa
o papel de apenas olhar para ser, de algum modo, mais atuante, devido a tanta
empatia: "A experiência é o que nos passa, o que nos
acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que
toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos
acontece. Dir-se-ia que tudo o que se passa está organizado para que nada nos
aconteça"
(p. 21). Em "Hoje Eu Quero Voltar Sozinho", o espectador disposto, poderá
entregar-se ao que passa nele [em si mesmo], a partir de uma obra de arte.
NOTA: Esse filme foi indicado - pelo Brasil - como habilitado a candidatar-se a lista para o Oscar de 2015 de Melhor Filme Estrangeiro.
Imagens em cima: poster do filme, a cena do cheiro do moletom e a cena do olhar de desejo de Gabriel no chuveiro. Imagem abaixo: Leonardo é vítima de bullyng por ser cego e por homem servir-lhe de ajudador/apoiador.
Referência: BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência.