quarta-feira, 2 de dezembro de 2015


UM GOSTO AMARGO DE FESTA




























Festen (DINAMARCA/ SUÉCIA, Festa de família, 1998, direção de Thomas Vinterberg). É um dos marcos do movimento Dogma 95. Foi o primeiro filme do movimento Dogma 95, criado por Thomas Vinterberg e Lars Von Trier em 1995, que estabelece um conjunto de dez regras ("the vow of chastity", ou, em português, "o voto de castidade"), para a realização cinematográfica.

Numa festa de aniversário do pai - um rico hoteleiro. Os filhos comparecem. Logo no começo já se verifica conflitos com a figura paterna. Já a mãe passiva, artificial. O pai condena tudo e todos, é um moralista. A mãe é submissa e que compactua com tudo, mas fazendo a linha "sou mamãezinha querida" - mas o filme não dá conta dessa personagem, que persiste como boa, mas que se desvela sua maleficidade, pretensa neutralidade. 

No meio da festa, o filho Christian, o ator Ulrich Thomsen, o loiro da foto acima, em magistral interpretação, a mais elogiada pela crítica, resolve tornar a festa mais "animada" pela via da sua angústia fundamental: (des)vela que ele e a irmã (que se suicidou) foram objetos de abuso sexual do pai, quando crianças. O clima pesa, a festa não acaba oficialmente, mas ela morre, uma festa para os mortos. 

O ritual festeiro persiste - eles contrataram uma animadora kkk As falsianes estão soltas naquele evento kkk A burguesia sórdida escondida. Um país em frangalhos moral e ético, apesar da riqueza econômica e cultural, de políticas públicas efetivas desses dois países ricos, Dinamarca (onde ocorre a narrativa) e Suécia (logo ao lado kkk que ajudou no financiamento da obra). Estamos na Europa nobre, refinada - e que de fato o é, mas que o filme (O FILME) desvela a podridão que há no reino da Dinamarca (kkk), que não é só lá kkk Nada estranho no mundo.

A sombra do desespero irrompe. Um gosto amargo de festa. 

Negam Christiam, e ele só tem a seu favor a memória, e a memória é nossa maior alegria, e maior tristeza. Duvidam do rapaz.

O filme mostra as mortes simbólicas de quase todos dali, suicídio (da irmã), preconceito racial, pois o namorado roqueiro rico de uma das filhas é negro, mesmo sendo rico e famoso, ou seja, é racismo mesmo, o dinheiro nem sempre escamoteia o ódio do outro pela cor da pele. A cena de parte da família e convidados falando em dinamarquês (o roqueiro é inglês) abusando da Negritude, é maravilhosa, pela revolta que nos causa, o cinismo burguês (daquela burguesia ali mostrada) contra o negro, e ele não entende e pensa que é bobagem e sorri. 

Há então a mãe conivente (mas fazendo-se de bondosa), essa personagem eu não engoli kkk A atriz perfeita.

Tudo pesa, nesse maravilhoso filme, obra de arte. 

Christian é expulso da festa, inclusive pelo irmão alcoólico (odiado pelo pai). Christian vai ao quarto onde a irmão se suicidou - e pra fazer isso precisa fazer uma via crucis, uma saga, de fora entrar para dentro da casa (dentro de suas memórias). Quando chega ao quarto da irmã que se matou, ele procura (porque acha kkk) um bilhete dela deixado antes de morrer, escondido e revelando o fato. 

O pai é nefasto, afastado das crianças - seus netos. É expulso da festa - estamos na Dinamarca, onde a justiça impera, dá entender que ele será justiçado, e não é preciso fazer justiça com as próprias mãos - nunca. A mãe como disse não é bem resolvida pelo diretor. Meu Deus, acho que tenho problemas com as figuras maternas kkk mas juro que é apenas nesse (e outros) filme kkk). Mas as vezes penso que a narrativa deixa a mãe em um entrelugar complexo, e ficando ali é preciso que os espectadores se entreguem a uma apreciação dessa mulher matrona. Na película a vemos sentada como se fosse uma Lady, na imensa mesa. Mas a câmera passeia sobre a matrona de cedro (mãe), mostra olhos arregalados, cabelos meticulosamente ajeitados, vestido de marca (no caso, um nojo), uma empáfia sueca ou dinamarquesa (nossa arrogância brasileira), uma maquiagem, uma máscara, um ar de desdém. Teve um momento que me recordou o personagem Tagawa (que eu venero kkk) do filme japonês "Doushitemo Furetakunai" (2014; direção de Chihiro Amano] quando diz no começo do filme: "- Eu não tenho salvação!". Sim, a Grande Mãe sabia de tudo, até tentou proteger aos filhos, mas calou-se, não levou o caso a justiça e permaneceu com o crápula (ideia do filme), sim, tem figura materna que não tem salvação. Togawa teve, ela não!

Esse filme é de uma rara beleza. Dizem que foi feito assim: foi realizado inúmeros ensaios, não há música a não ser a que aparecia na festa (cantada), sons diversos, iluminação do ambiente e outras regras do que se denominou movimento dogma do cinema - é o primeiro desse articular de ideias artísticas. Tudo filmado sem cortes (imagine...) e ao mesmo tempo não é um teatro filmado, pois a câmera acompanha os personagens nos diversos aposentos da casa. Como eu disse, o ator Ulrich Thomsen faz desse filme sua mais perfeita interpretação, seu melhor trabalho que ele carregará na História do Cinema como ator. Eu acho assim, preferível um único filme numa obra de arte do que mil porcarias. O ator que elogiamos, brilhou em mais filmes, inclusive em filmes populares de Hollywood, ganhou rios de dinheiro, mas foi em Festa que ele foi verdadeiramente um ator, um exemplo pros seus colegas. Na época um jovem, com uma beleza nórdica - a beleza do seu país, sim, há inúmeras belezas masculinas e femininas em todos os cantos do mundo, e as oficiais são historicamente produzidas, construídas. Os cabelos loiros, a revolta dos cabelos (depois, na vida, o ator ficou careca kkk) compatíveis com a revolta interior, uma expressão corporal que acompanha. Um homem abusado na infância que luta pra ser feliz, pois nem namoradas ele consegue ter. A presença da empregada que gosta dele é um alívio em tanta tensão densa e intensa: apesar dos abusos, ele se recompõe e se entrega ao amor de uma mulher. Temos esperanças, não é só porque o passado foi um drama, que não se consegue solucionar o existir, trazendo-o, no mais possível, digno e cidadão. 

Está vendo aquele moço abusado pelo pai na infância? Ele é um cidadão que dá vida mesma retirou sua saúde mental.


NOTA: Assisti a esse filme na sua época, e hoje analisando-o é que comparo com uma cena do referido filme japonês de Amamo (2014). Mas são duas obras de arte distintas, em tempos e espaços diferenciados, com propostas antagônicas.