SER IDOSA, QUE SE AUTODESCREVE COM PROBLEMAS COGNITIVOS (MEMÓRIA) NA SALA DA EJA, PENETRADA PELA EDUCAÇÃO ESPECIAL E PELA EDUCAÇÃO INCLUSIVA
Contexto: realizei dois meses de visitas científicas (objetivo de pesquisa fenomenológico-existencial do ser-no-mundo) em uma sala de aula da modalidade de ensino EJA, localizada em um Centro Comunitário, foi onde, dentre outros fenômenos vividos, encontrei dona Caetana Flora.
Dona Caetana é diabética tipo 2 toma, segundo ela, via e-mail: Glifage 1g XR; losartana potássica e hidroclorotiazida, 100 +25 mg; atorvastatina cálcica 80mg; BUP 300 (para tratar de transtorno depressivo maior); losartana potássica 50mg - à noite; "tomo remédio para urina presa" (ela diz). "Eu tomo remédio para dormir", disse no outro dia quando conversamos sobre remédios, (ela acha que é Clonazepam). Depois da diabetes, os filhos pagam para ela uma academia no bairro. Gosta de dançar. Faz bordados em casa "para presentear minha amigas"
Temas: ser idosa feminina viúva aposentada com dois filhos (um economista e pedagoga, ambos trabalhando nos seus ofícios e com uma presença diária, mas nem por isso menos criticada por ela), casa próprio, em um bairro da periferia. Analfabeta oficialmente, mas com bom desempenho escolar.
Pretendemos avaliar a cognição dela, com instrumentos psicológicos (padronizados) e já contactamos médicos - uma geriatra, um psiquiatra e um neurologista do serviço público de saúde, que conheço, interessados em produzir pesquisas.
Eis o resumo (de memória - cheguei agora e só usei das lembranças, por ora) muito emocionante dessa aluna provocadora numa sala de aula da modalidade EJA
**
Ela se nomeia Caetana Flora, 65 anos de idade, feminina, aposentada como faxineira de uma repartição pública, mora em uma capital de um Estado brasileiro, sua residência é em bairro da periferia, casa própria, dois filhos, um é economista e como tal funcionário do Estado e uma filha professora do ensino fundamental (licenciada em Pedagogia) que estão diariamente presentes com ela. Viúva há 2 anos, mais ou menos. Tem amigas vizinhas, com idades semelhantes – saem sempre para o forró num centro comunitário, perto da casa delas, em um projeto social da prefeitura. Oficialmente analfabeta, e que agora resolveu estudar matriculando-se na modalidade de ensino EJA - Educação de Jovens e Adultos - onde revelou que tem algum conhecimento que só precisa ser mais bem explorado. Ela anda se queixando na sala de "problemas de esquecimento", que ela mesma descreve como algo natural da idade - o que cientificamente tem sido denominado nessa esfera de declínio cognitivo, mas que no caso dela, precisaria de confirmação por psicólogo e psiquiatra e ou. Ainda que haja essa queixa, com fácil constatação desse pesquisador (e dos professores dela), ela é persistente, marcando presença e parecendo lutar contra todo esse movimento contrário ao seu crescimento e aprendizagem. Ela denúncia assédios dos dois filhos do tipo "recordá-la” sempre de sua inferioridade por possíveis patologias que um dia virão, percebendo nisso um verniz para o preconceito. Há ainda ações em que ela percebe que é criado para humilhá-la. Outra denúncia é o uso de linguagem infantil com ela, para colocá-la num período em que ela não tinha autonomia. Nas conversas dela conosco, pesquisadores, dona Caetana sempre brinca com o seu ser idoso, o modo como ela está envelhecendo, e a idade real 65 é sempre trocada (na linguagem) por “cem anos” (“meus cem anos de idade não permite que eu aprenda isso, professora”, ela diz em sorrisos), queixa da decrepitude física (“minha cara é pelanca pura, mas não tenho coragem de ficar me maquiando para enganar as pessoas e nem a mim mesma”). Por vezes relata sentimentos ligados à tristeza (especialmente sentimento emocional-psicológico nascido das relações com os filhos, que usam o verniz da proteção, como modo de humilhação e diminuição: “eles querem ficar bem na fita”, ela diz em sorrisos). Toma remédio contra depressão. Depois que o marido dela morreu, tornou-se uma “viúva alegre”, ela diz, “pois, passou a ter o salário dele acoplado ao dela, e por isso pode ir a forrós todo final de semana no centro comunitário do bairro com evento só para idosos”, ela descreve. Um dia desses, ela se sentou em um banco do centro comunitário (onde está inserido a modalidade EJA) e começou a comentar um programa de televisão onde apareceu o tema dos “velhos” as dificuldades de ser respeitados, se procuram emprego, não encontram, e são criticados: “por que não são aposentados? Preguiçosos”, e se têm aposentadoria: “deveria ir trabalhar, está jovem ainda, aí o salário da aposentadoria iria melhor”. Cobram muito pelo nosso “passado”: não estudamos, não temos diplomas, não somos honrados, cobram muito pelo nosso passado: não estudamos, não temos diplomas, não somos honrados, usa-se terminologia que nos diminuem, mas com cara de que estão interessados por nós (os elogios como vernizes mascarados pele Cuidado, mas descuidadosos que são), nos casamos com o homem errado, leia-se pobre. Critica programas de saúde pública que não atendem de modo rápido e profundo questões dos idosos, mas cujas propagandas estão pontuadas – “mas, sei que sem esses programas nossa vida estaria pior, pois precisamos de melhor sempre esses programas...” Elogia a modalidade de ensino que frequenta, e a professora a elogia pelos conhecimentos que trouxe para aquela comunidade escolar, sempre auxiliando à professora a ensinar aos outros, e “digo isso com muito orgulho”
***
Esse relato "sobre" dona Caetana Flora é apenas uma pequena ponta de um longo e profundo iceberg, que aqui-agora resumi, pois não pretendo dar todo o relato que guardarei para estudos fenomenológicos sobre a presença da Educação Especial numa sala de Educação de Jovens e Adultos, EJA (que preferiria chamar-se Educação de Jovens, Adultos e Idosos, EJAI). Meu interesse é por pessoas idosas, com problemas cognitivos "autodescritos" na sala de aula tidos fomo próprios da "idade avançada", bem como o estado de saúde indicadores dos remédios que ingere, e o impacto positivos ou não, ou nem perceptível deles. O objetivo é ampliar a atuação do processo ensino-aprendizagem na sala de aula da modalidade EJA interpenetrada por uma outra, a da Educação Especial numa perspectiva inclusiva, e como sempre destacando o currículo não-escolar na escolaridade como a potência da Educação Inclusiva (e da Social) nessa mesma estrutura organizacional educacional do tipo escolar. Com ela, por exemplo, planejamos, executamos e avaliamos jogos cognitivos, conteúdos esses, sempre (co)movidos pela nossa postura humanista existencial e fenomenológica da aluno que é ser no mundo, focando no seu "que é", "como é" na sua "experiência vivida" e os significados que fornece a ela, no seu projeto "amoroso, do esperançar e do ser mais, temas imbricados com uma educação dos sentidos" aproximando-nos de Paulo Freire e de Rubem Alves, indo à cata a alfabetização de sucesso, conscientização crítica e a ação de anunciar as humanidades, e de denunciar as desumanidades.
Recordando que nossa ação é para produzir conhecimentos da relação entre a EJA (ou EJAI) e a Educação Especial numa perspectiva inclusiva, bem como a Educação Inclusiva.
*
Hiran Pinel, autor
em citando, referendar.
PINEL, Hiran.
Troquei dados para não identificar, nem mesmo bairro, cidade - nada. O resto é o fato a "experiência vivida do ser-no-mundo" (in Pinel, 1999) de dona Caetana Flora. A experiência vivida é o objeto de estudo e de intervenção (inclusive educacional) da Psicologia e da Pedagogia Fenomenológico-Existencial.