segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Olho para a foto - uma imagem da infância que está, de repente, voltando sempre à memória. Você acabou de entrar na nossa casa, e pelado, deita na cama de bambu. Lá fora, a chuva está tempestuosa, e o vento forte faz tremer a porta de entrada. De lá de dentro, eu te observo. Você acabou de pegar o pedaço de batata doce cozida por mim, deixada pra você. Você a come com boca doce, e eu sei que desejas dormir bem, esquecer dos problemas de sua saúde e da ausência de sua esposa e filhos. Já faz muito tempo que eu capotei do nosso telhado, foi quando a chuva caía danada até ao chão - e você me segurou tão forte. Há muito tempo atrás, foi há muito tempo - atrás, atrás de mim e eu olhando pra trás e vendo você. Sinto muita falta desse tempo, do espaço que se transformou em lugar de afeto. Era uma casa de pau pereira, com uma folha única de taioba. Minhas irmãs, nesse momento, estão brincando com dezenas de tangerinas. Abro a porta para não te acordar e deixar meu amigo dormir, descansar desses dias de inferno que vive. Vou com elas jogar bolas de tangerinas, bem na frente da prateleira de quinquilharias que você colocou fora do quarto, agora comigo, eu vendo, sentindo meus restos atrelados aos seus. Você dorme, e já é final de noite. Do quarto eu o vejo tomando banho, e logo grita forte: eis meu nome, e o meu corpo se alegra. "- Vamos assistir as estrelas?" - você me convida, certo que aceitarei o convite. La fora, escuto umas carpideiras, pois ao lado da nossa casa, morreu o Padre Ngern, que era também pescador - pescava a minha dor. Subimos em cima de casa, no teto, e alheios ao som entristecidos dos falsos choros, você me contou mais uma história daquela certeira estrela no céu. Ao contar-me, dormi nos seus braços e no seu colo, toquei seu corpo, e o fiz ardentemente embalado pela saudade daquilo que foi, sem nunca ter sido. E você se entregou como sempre fez (e faz) aos meus apelos - pelo menos você, tão frágil e adoentado que é, tão forte e saudável que foi - tão sacana e a favor da vida que sou - que somos.

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Hiran Pinel, autor.