segunda-feira, 5 de junho de 2017


No filme "Rosa Púrpura do Cairo" (de Woody Allen) há uma garçonete chamada Cecília, casada com um cara que a agride, vive uma vida de merda - durante tempos sombrios dos Estados Unidos (Grande Depressão, de 1929), uma crise que atacou o mundo. Ela esquece essa e outras vivência dolorosas, inserindo-se em outra (vivência) - a de ir ao cinema. Nesse cinema ela tem uma predileção por um filme que ela assiste dezenas de vezes, até que um dia, estando re-assistindo o mesmo filme que se chama "Rosa Púrpura do Cairo", constata que o galã da referida obra de arte, sai da tela e se transforma em humano desajeitado, pois homem da ficção é diferente do real. Esse ser imaginado saí do telão e vem conversar com ela no real e saem por aí, e há um momento em que ele a leva para dentro do filme, da ficção... Arte/ficção e realidade se retroalimentam... É no cinema que a pobre garçonete irá ver e sonhar com homem lindo, educado, elegante, corajosos, que defende as mulheres, macho perfeito, que só tem cheiro bom (e não catinga) etc. Ela sonha com o homem idealizado, romantizado. O interessante é que o seu final é sempre ilusório: ela entra no cinema e sorri um riso puro e ingênuo tipo Cabíria de Fellini. Ela acredita que se a sua vida real é uma bosta (e é), mas essa mesma vida inventou/ criou a arte, a literatura, a poesia, os esportes, a pintura - a ilusão, o sonho como modos de sobreviver a todo esse mau cheiro. É certo que ela poderia sonhar vendo um filme, e ao mesmo tempo aprender a discernir fantasia da realidade - claro! Entretanto, no caos dessa crise nacional e internacional, não é bom para seu país detectar o quanto a sua nação é maléfica e produtora de tanta angústia. Ter uma cidadã chamada Cecília consciente crítica, é ter mais uma a perturbar a ideologia dominante... Ela seria uma ameaça ao Estado voraz, consumidor destrambelhado, competidor desenfreado. Mas não é apenas os Estados Unidos, é o Brasil também, e o mundo... Por isso Cecília tem como opção apenas sentir-se alienada - nem ao marido enfrenta, um troglodita como muitos maridos ainda. Ela sorri no cinema, diante de um novo filme que projeta na tela e já podemos imaginar que daqui uns tempos (naquele espaço), outro galã sairá das telas, desajeitado e incompetente a lidar com o real, mas acima de tudo ele será a comprovação de que sem ele (essa fantasia) a realidade não teria significado vivido, e sem a realidade ele (a fantasia) não se comporia, não se instauraria. Por isso eu acho, ACHO, que quanto mais existe os tempos sombrios, mais a arte e a literatura, as mais fantasiosas possíveis, se proliferam havendo assim uma demanda de consumo. Falo de tempos sombrios sejam eles pessoais/ íntimos, mas também, e principalmente os sociais. No Brasil se vai ainda muito pouco ao cinema (mesmo sendo um mercado promissor), bem como pouco se lê literatura/ poesia, mas temos as telenovelas, as séries de TV e internet, músicas populares (maior e mais imediato consumo), o futebol (que também é arte) etc.

A imagem pode conter: 1 pessoa, sentado e close-up